quarta-feira, agosto 13, 2003

Planeta Solaris

Mortais somos. E pela nossa vida fora julgamos encontrar e conhecer centenas, milhares até, «semelhantes». A vida é, além disso, uma sucessão de perdas e ganhos. Sempre vitórias e derrotas. Morrem-nos os parentes. Ganhamos um amigo, uma namorada, talvez. Mas raro é o momento em que nos preocupamos em saber quem somos.

O filme abre com uma comovente despedida da Terra ao som da eterna música de JS Bach. Ele vai partir para um satélite artificial de um planeta recém-descoberto. Julga que jamais voltará à sua amada terra, pois a missão é longa… É esta a abertura do filme Solaris de Andrei Tarkovsky. Não nos referimos ao homónimo blockbuster recente. Remake sem qualidade e apenas com o intuito comercial de vender as nádegas de George Clooney. O filme a que nos referimos é o original, uma das obras-primas de Tarkovsky, realizador-filósovo de filmes como Andrei Rubliev ou Stalker…
Depois de se despedir da Terra e dos seus familiares, Kelvin (assim é o nome do personagem principal) chega ao seu destino para estudar o planeta. Mas, desde o começo da sua estada, ele começa a ter visões dos seus desejos, dos seus sonhos subconscientes. A sua mulher, morta há tanto tempo e que ele amava, reaparece-lhe, por exemplo. É que o planeta tem o dom de transformar os desejos inconscientes em realidade.
É isto Solaris. Uma metáfora do nosso ser para além do consciente. Dos nossos desejos e frustrações. Perdas e ganhos que gostávamos de repetir e que moldam o ser íntimo que somos. Solaris somos nós. Por trás de cada ser existe outro, silencioso para o Mundo. Um desconhecido que nos habita.
E nesta metáfora também podemos reparar que as relações humanas não passam de contactos entre «planetas». Quantas vezes estamos com uma pessoa a quem desejamos passar uma mensagem. Mas o nosso intuito é irrealizável devido a forças interiores a nós. Não abordamos o tema, ou quando ele é abordado a mensagem é descodificada de maneira diferente. Mesmo no amor – pelas coisas, pelo nosso animal de estimação, pela família, pelos amigos, por alguém especial, etc. – quantas vezes é difícil passar ao próximo o nosso mais puro sentimento? Que o amamos. Que agradecemos a algo inexplicável o facto de ele existir… Complicado é estender a mão e sermos sinceros. Com os outros e, principalmente, connosco.
Ver Solaris é uma aprendizagem. E a grande cena do filme é a última. Aquela em que o filme se explica, em que a metáfora das duas horas de visionamento desta obra é explicada. Aquela que faz o parágrafo anterior deste texto ser provido de sentido. É, quando de regresso a casa, Kelvin se ajoelha perante o pai, chorando. É um lacrimejar de amor, de amor pelas coisas, pela Terra. Mas é também um choro profundo, em que todos os seres são evocados para compreenderem o grande mistério da criação: a vida, suas angústias e metafísica. Nesse momento de ternura, de emoção racional, a câmara faz um movimento de zoom out. Afasta-se, para vermos o que circunda a casa. Já não são os campos nem as árvores do começo do filme. A casa transformou-se numa ilha do planeta Solaris. Do nosso planeta íntimo, do nós-Solaris. Uma humanidade muda no espanto da vida. Um sentimento de agonia…

(to be continued)

Duarte SD

1 Comments:

Blogger White Castle said...

Quanto se aprende neste blog ;)

E quanto perdeu Direito por não o frequentares mais cedo... :(

2:31 da tarde  

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