sexta-feira, junho 03, 2005

O medo de existirmos



É um livro que se lê de uma ponta à outra em sobressalto. Que incomoda a cada frase. Livro-espelho onde a cada página folheada encontramos uma explicação da nossa identidade colectiva. Toda a alma portuguesa está estudada em Portugal Hoje – o medo de existir, último livro do filósofo José Gil. Desde os seus medos ao seu comportamento, passando por uma visão do passado que atraiçoa o nosso modo de ser. É como uma catarse colectiva. É o livro que faltava!

O que é ser português neste começo de século? É a partir desta interrogação que José Gil desenvolve a sua pesquisa. Segundo o autor, Portugal é o país da “não-inscrição”. Ou seja, uma nação onde os acontecimentos – dos mais insignificantes aos mais importantes – pouco marcam os portugueses, ficando-nos numa contínua monotonia que nos corrói a certeza de um melhor futuro. Isto porque há um medo, inerente ao ser português, de agir para além do quotidiano. E esse medo é (ainda) impulsionado por “fantasmas” de um salazarismo que nos minou a autoconfiança e o futuro. Deste modo, e recorrendo a uma cuidada observação da sociedade portuguesa, José Gil analisa a nossa sociedade de uma forma sublime. E chega à conclusão que somos um país mergulhado numa “névoa branca” que não nos deixa avançar numa direcção concreta. De facto, andamos perdidos e não achamos um caminho para a nossa afirmação como povo moderno.

Mas porque é que nos encontramos num impasse, sem acreditarmos nas nossas capacidades? José Gil explica isto como sendo uma questão de mentalidade. Esta é, em muitos casos segundo o filósofo, mesquinha e egoísta. Além disso, demasiados indivíduos, no nosso país, sobrepõem a vontade e o bem-estar individual ao colectivo. Mentalidades fechadas têm medo do novo e de quem as possa ultrapassar. Desse modo, explica Gil, cria-se uma teia de invejas e ressentimentos que acabam por minar a sociedade portuguesa em todos os lados. Nas escolas, nas universidades, na administração pública, em empresas privadas, etc. Por isso, é difícil que Portugal avance, estando constantemente em crise de identidade.

Apresenta-nos José Gil uma visão pessimista de um país de almas perdidas? Nada disso. Como explica o autor nas notas finais, “se não se falou do bom que há, em Portugal, foi apenas porque se deu relevo àquilo que impede a expressão das nossas forças…”. Sim, já existem actualmente “forças” no nosso país que tentam sair do aparente marasmo que se vive em Portugal, e que não se deixam contagiar por invejas nem intrigas. Essas forças acreditam que o país pode mudar para melhor. Porque o problema dos portugueses é não acreditarem em si, nem seguirem o exemplo de outros países que, por vezes, só têm a mais força de vontade e orgulho naquilo que realizam. Há que perder o “vício” de nos considerarmos inferiores aos outros. Desculpa esfarrapada de quem tem medo de chegar um pouco mais além.

A leitura do livro de José Gil pode servir de catarse para que o “medo de existir” se comece a dissipar. Para finalmente Portugal encontrar o caminho que acabe com a “apagada e vil tristeza” que já constatava Camões, e nos afirmarmos orgulhosos de nós. Para que o Portugal futuro seja um país descomplexado. Inscrevamo-nos finalmente na história. Ganhemos confiança e acreditemos em nós. Assim se poderá construir um novo Portugal.

Publicado no jornal Bonfim Actual, na minha crónica Olhares do Norte. Um projecto ao qual me orgulho de pertencer e no qual acredito. Este jornal de "freguesia" pode ser consultado online no site Jornal Regional.