sexta-feira, setembro 19, 2003

O livro da minha vida

Livros há que se parecem com belas melodias que ouvimos na infância. E, desses primeiros contactos com essas músicas, elas passam a acompanhar-nos pela vida fora. Às vezes, por acaso surgem em inesperados momentos. E ouvimos sonoridades que amamos dentro do nosso ser. O mesmo se passa com alguns livros. Se são lidos e, durante a primeira leitura, os começamos a amar, eles passam a fazer parte de nós. De-pois, a qualquer momento, uma frase ou expressão deles nos surgem a qualquer instan-te, nos acontecem.
É o que se passa com um livro muito especial que li na jovem adolescência e que até agora me acompanhou. O autor é Bernardo Soares, semi-heterónimo de Fernando Pessoa. A obra é O livro do desassossego, título extremamente poético para reflexões inquietantes do quotidiano. Este livro reúne um conjunto fragmentado de pensamentos de um anónimo guarda-livros de Lisboa. Porém, no seu conjunto o livro forma um todo. Uma espécie de diário – quase um romance – de um solitário que, para ao tédio escapar, busca-se e procura outra vida nele por viver: o mundo dos sonhos. É esse, em O livro do desassossego, o reino de Bernardo Soares/Fernando Pessoa.
Os escritos para este livro tiveram dois momentos distintos. A primeira, na ju-ventude de Pessoa, quando era influenciado pelo simbolismo, pelo paulismo e outras correntes literárias em voga na altura da implantação da República. É desta fase o bri-lhante texto Na floresta do alheamento, onde está já germinada a heteronímia. Nele os dois são um. E o um é múltiplo e fragmentado, sentindo sensações várias. A segunda fase, já tardia, é onde surge Bernardo Soares. Apenas alguém que vive numa rua da bai-xa pombalina, e que no tédio de tudo procura um sentido para a sua existência. Desta fase há trechos do livro que, sendo de reflexão pessoal, rapidamente se repercutam para nós leitores. Sentimos como Soares/Pessoa. Passamos a ser, também, anónimos empre-gados de escritório, numa cidade que pode ser qualquer lugar do planeta. A «Lisboa meu lar» pode ser qualquer local que amemos. E, como portugueses, descobrimos que este livro é, também, sobre nós, sobre a nossa língua: «minha pátria é a língua portugue-sa». Eis uma das grandes mensagens do livro. Amar algo espiritual é amarmo-nos, é conseguirmos cumprir uma vida tal como o faz Soares ao escrever. Escrever, para ele, é viver. É separar-se do mundo real para o mundo dos sonhos, para o mundo do futuro.
Assim, Soares/Pessoa escreve para um futuro que será o seu presente. É aí que está a sua família. È aí-agora que eu, leitor deste livro, me situo como familiar de Soa-res/Pessoa. «Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim gente que me «compreenda», os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado». Cada vez que me ocorrem na memória estas frases, sinto que a minha missão de leitor está cumprida. Pessoa (re)nasceu em mim, e nos outros que o lêem, para ser amado e para ser um «intérprete do século XX», tal como era seu desejo.
Por estas razões, e por tantas outras que não cabem numa só página, O livro do desassossego encontra-se sempre na minha mesa-de-cabeceira. Muitas vezes, antes de adormecer, releio à sorte um trecho do livro. E com um pouco de leitura, sinto-me a en-trar noutra dimensão: a dos sonhos, onde a sensação pura e a descoberta são o principal. É uma obra que não me canso de ler, pois nela descobrem-se sempre coisas novas. Idei-as e impressões que nos fazem pensar e conhecermo-nos melhor.



Duarte Sousa Dias

1 Comments:

Blogger White Castle said...

Ainda não li o Livro do Desassossego: falha temperada pela inércia do correr do tempo e das tarefas, e do pasmar do nada...

Contudo, gosto muito de Pessoa, poeta que ao inicio escarneci...
Mas, como tu, também tenho quase sempre ao meu lado um livro de pessoa, fiel companheiro de momentos negros que Pessoa tão melhor transmite que eu...


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9:36 da tarde  

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