domingo, novembro 06, 2005

Saudades epistolares

Saudades tenho dos tempos em que se escreviam cartas. É um hábito perdido. Terrivelmente perdido. O contacto directo com a caneta em face ao papel. Esse momento físico, em que contavamos ao correpondente algo. O pensar na outra pessoa - que talvez com saudades - esperava a nossa carta pelas manhãs abafadas de Verão. A notícia sobre uma vida.
Infelizmente o mundo mudou. E hoje já não se recebe correspondência. Existem e-mails. Formas de comunicação instantânea como o messenger. E, está claro, os telefones e telemóveis. Grandes progressos feitos na comunicação. Mas apenas técnicos. Porque se há algo que se está a perder é a arte de escrever uma carta. É o momento único em que pomos na fé da caneta e do papel todo um modo de pensar e sentir. Já não sobrarão para a posteridade as cartas de amor dos poetas e escritores do amanhã desta noite. Já não poderemos achá-las "ridículas", como o afirmou Álvaro de Campos. Mas ridículo, agora, é talvez já não haverem cartas. Não aquelas, como já devem ter compreendido, de contas, bancos ou a mera publicidade. Essas são apenas folhas descoloridas e oportunistas. Refiro-me, até agora, à correspondência mantida com os amigos. Ao querer saber como eles estão. Por vezes uma frase de uma carta valia - e vale - mais e mais do que o e-mail de maior tamanho. O contentarmo-nos com a caligrafia da outra pessoa. O guardar as cartas numa velha caixa de sapatos. Entre os dedos as repassar, numa suave carícia ao velho papel que de alguém partiu e uma viagem fez por sítios desconhecidos. E por vezes relê-las mais tarde. E nelas descobrir de novo segredos. O ler pela primeira vez as entrelinhas.
Que saudades daquelas manhãs em que esperava na fresca soleira da porta pela carta. Elas para mim eram como a anunciação de um mundo. Eram as notícias esperadas. O ver a tua caligrafia e erros de escrita que me deliciavam. Que saudades dos tempos em que eu me sentava à mesa de amadeira da sala de jantar, e com a minha caligrafia insegura me anuciava a ti. O pensar as palavras que mais te iriam agradar. Que tivessem o efeito da chuva com as flores: dar vida ao teu sorriso. Hoje o que nos sobra? Os sms e a internet. Apenas avanços técnicos. Que a alma fazem preguiçosa ficar.

Por vezes apetece-me ir embora para longe. Voltar a mergulhar em novas terras e povos. E aí não procuraria computadores nem telefones. Mas levaria na carteira, bem junto ao peito, os endereços postais das pessoas com quem, nas longas noites de insónia que tenho, me apeteceria conversar. E aí, ao contactar com a reluzente folha de papel branco com o candeeiro reflectido, para além de pensar no correspondente, poderia descobrir o meu eu profundo.

1 Comments:

Blogger White Castle said...

Isto vai de encontro ao que falamos hoje... passado 2 anos... e o futuro toca no passado... bj

10:43 da tarde  

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