domingo, novembro 09, 2003

Um Fernando Pessoa – reflexões em torno das recentes edições da obra do poeta

A obra de Pessoa continua a ser publicada na Assírio & Alvim, a editora que (re)comprou os direitos à família do poeta da multiplicidade. Porém, cada vez mais se questiona a importância de escritos incompletos, muitas vezes casuais, de Pessoa.É muito interessante a leitura do(s) artigo(s) publicados hoje por Luís Miguel Queirós, no Mil Folhas – suplemento cultural do jornal Público (o mesmo que publica a idiotice «O Inimigo Público») de óptima qualidade -, principalmente a coluna «a quatro mãos». Neste artigo, o autor reflecte sobre grande parte dos manuscritos inéditos de Pessoa não virem acrescentar nada de novo à grandeza do poeta. Defende o colunista – inspirando-se em Herberto Hélder – que «faz falta uma obra poética de Pessoa “limpinha”». O que Queirós pretende afirmar é que as editoras como a Assírio & Alvim, mais aquelas que virão, a partir de 2005 quando caírem no domínio público, publicar e republicar novos textos e visões da obra, se esquecem que os escritos do autor da «Mensagem» se destinam também ao povo, à gente comum. Passamos a explicar este ponto de vista. As edições da Assírio & Alvim têm qualidade literária – e preços escandalosos e mau papel – mas destinam-se cada vez mais a estudiosos ou «fanáticos» pessoanos. Não são destinadas àqueles que não precisam de conhecer a ambiência da vida e do mundo de Pessoa para o admirar e o amar. Porque os textos completos, aqueles que Pessoa publicou em vida e também alguns póstumos, têm em si uma forma de escrita, uma expressão de sensações e pensamentos, que valem por si e não no conjunto de uma obra imensa e fragmentada. A «Tabacaria» de Campos, por exemplo, conseguiu sozinha dar a conhecer a genialidade do seu autor a António Tabuchi e fasciná-lo de tal modo que este italiano de nascença hoje se considera português também. Mesmo a «Mensagem» vale por si. Se nos abstrairmos da visão messiânica do Portugal do V Império prometido – leitura cada vez mais necessária desta obra -, olharmos o texto como estrangeiros que a podem ler no mesmo dialecto (mas não na mesma língua: aquele Portugal futuro está morto e bem enterrado), podemo-nos aperceber de uma grandeza de expressão. Da maneira como a poesia não tinha segredos para o seu autor. Frases lapidares que só alguém de génio podia ter pensado, sonhado e transcrito para papel.
Curioso como também a visão de Luís Miguel Queirós vem ao encontro de uma necessidade que vínhamos sentindo à algum tempo. A necessidade de um Pessoa puro, nem que regressássemos às «caducas» edições da Ática. Foi o que começamos a fazer, comprando os volumes de poesia ortónima do poeta. A Assírio ainda não as começou a publicar, exceptuando as «Quadras» e a «Mensagem» mais alguns poucos poemas. As edições da Casa da Moeda – a leitura necessária para os especialistas de Pessoa – são demasiado técnicas. Não nos sentimos à vontade, nem temos prazer em ler, poemas cheios de notas e variantes. A Europa América tem, na poesia, edições horríveis. Por isso, «regressámos ao passado». Às edições do tempo em que Pessoa começava a ser admirado. Em que não havia uma agitação tão grande em torno da arca dos inéditos. E vale a pena o regresso. Lê-se Pessoa de outro modo. Mergulhado na poesia, na grande escrita, que é o que vale a pena. Sem darmos demasiada importância a inéditos que não passavam, por vezes, de notas soltas para a realização de futuras obras. De necessidade de escrever quando nãos se sabia o quê.
Pessoa seria certamente um escritor compulsivo. Nota-se isso em muitas passagens do «Livro do Desassossego», o seu «laboratório de linguagem» segundo José Gil. E a maior parte desses escritos não são essenciais. Nem para leitura nem para a obra. Devem ser publicados, evidentemente, mas nas edições críticas como a da Casa da Moeda (que para publicar um volume da obra de Pessoa demora anos). O resto é perda de tempo, e envergonharia Pessoa se regressasse ao mundo dos vivos, vendo o que lhe tinham publicado. Porque Pessoa – nunca nos podemos esquecer – era um encenador de si próprio. Dos pensamentos, sentimentos e sensações. E muitos escritos não são falsos, mas também não são verdadeiros. São experiências. E assim devem ser lidos.

Duarte Sousadias