sábado, janeiro 21, 2006

Um cidadão para a eternidade

Escrevo estas linhas com o corpo a ser invadido pelo cansaço de um dia que talvez numa era futura a história se recorde. Vinte de janeiro de 2006. Último dia da campanha para as eleições presidenciais. Onde um Homem que já tudo ganhou a nível político acabou, aos 81 anos, por se candidatar imbuído por um espírito cívico que rareia na política. Estive neste dia com ele. Esperei-o nas Devesas, onde ele vinha no "comboio da liberdade" organiado pelo MP3 (o movimento de jovens que se revêm nos seus ideais e o apoiam nesta hora difícil). Fui com ele, acompanhado dos meus camaradas da JS, ao bairro da Biquinha em Matosinhos, onde pude mais uma vez constatar a sua vitalidade. E já no Pavilhão Rosa Mota, onde há pouco se encerrou a campanha, por ele gritei a plenos pulmões. E no fim, senti uma espécie de comoção quando ele o discurso acabou, e o Hino Nacional a plenos pulmões por milhares de vozes foi cantado. Mário Soares o seu nome. Um Homem que profundamente admiro. E que após estas eleições ainda mais espaço ganhou na minha, já elevada, consideração. Se razão existe para eu gostar de política, e por já activamente me envolver nela, Mário Soares é uma delas.
Ainda menino, recordo que quando despertei para "o mundo lá fora" era Soares quem "habitava" o Palácio cor-de-rosa que em março novo inquilino terá. Lembro-me que uma simpatia por aquela figura paterna adquiri imediatamente. Vagamente me recordo da sua segunda eleição. A televisão, na altura só existia a RTP, cortava então um certo filme que estava a ser transmitido, de minuto a minuto, para mostrar a festa da maioria absoluta em Lisboa. E lá estava ele, sorridente, da varanda da sua sede de candidatura, a olhar para o povo que o tinha novamente eleito. Milhões de portugueses. Que nele se reviam.
O tempo passou rápido no jardim poético (e por vezes trágico) da infância. E pouco duraram cinco anos, porque a consciência do tempo na infância e pre-adolescência se acaba por revelar como um tornado que rápido passa, mas consequências pode ter para todo o resto. Já com alguma cosnciência política recordo os últimos tempos de Soares em Belém. Quando ele na Amadora (julgo que nesse loal) caíu e um braço fracturou. Abertura dos telejornais com esse acontecimento. E, a saída dele do Hospital foi extraordinária. Continuava de sorriso aberto, fazendo humor com a sua própria situação. São raras pessoas assim. Quanto mais políticos. Depois foi o seu último dez de junho como presidente. De braço ao peito. Foi no Porto. Recordo-me porque várias personalidades da cidade fora distinguidas. Por exemplo João Pinto, capitão lendário do FC Porto, que foi condecorado pelo Presidente da Câmara de então, Fernando Gomes, porque Soares estava de braço ao peito.
O tempo continuava a passar. E aos poucos comecei também a compreender a História. Soube que apenas 20 anos antes (na altura uma eternidade parecia, hoje parece-me que, tragicamente há pouco tempo foi) o país era governado por um governo ditatorial. Onde a vontade do povo não podia nas urnas ser expressa. E a liberdade era uma espécie de bem controlado por um partido único. Homens lutavam então para que esse estado de coisas acabasse. Cidadãos que hoje se movem anonimamente pelas ruas. Outros, no entanto, tiveram mais projecção. E lá longe da pátria lutavam contra um regime que começava a estar podre. Um deles era Soares, referência obrigatória dos livros de História. Comecei a entender que àquele Homem simpático bochechas grandes devia também a liberdade de expressão. E que o seu papel após o 25 de abril fôra fundamental para o país traçar um novo rumo face à modernização.
Em inícios de 1996 Portugal elege, obrigatoriamente, um novo Presidente da República. Recordo-me vivamente da última manhã de Soares em Belém. Uma equipa de reportagem seguira-o nesse último dia como Presidente. Sempre de sorriso aberto, sem nenhuma tristea revelar, despediu-se dos empregados do Palácio de Belém e rumou à Assembleia da República para passar o testemunho a Jorge Sampaio, outro presidente de esquerda. Acabava assim, por quase todos glorificada, a segunda presidência de um Homem que, em certos momentos, mais pareceu uma espécie de rei - no bom sentido - para os portugueses.
Já na adolescência um acontecimento me atraíu, no Verão de 1998, a Lisboa. A Expo então parecia-me algo de fantástico que eu tinha que absolutamente que visitar. Num dos três dias em que andei pelo recinto, sem o saber, deparei-me com uam conferência aberta, sobre a Europa em que Soares conferenciava. Estava a terminar o evento. Mas eu ali fiquei, mais a minha mãe, a ouvi-lo nos derradeiros minutos. No fim, depois dos habituais cumprimentos, segui-o pelo recinto. Algumas fotos lhe tirei. Vi que ele entrara num pavilhão e segui-o. Coisa que hoje revejo, à luz da memória, como uma certa coragem que só os "putos", pela sua inocência, podem ter. Cheguei junto dele. Não sabia o que dizer. Mas não foi necessário. Da sua altura, Soares afagou-me a cabeça. Para ele me virei, estendedo-lhe nervosamente a mão, e exclamei: "doutor Soares, é uma honra conhecer o nosso maior político". Ele riu-se e de novo me afagou.
Os anos passaram desde esse encontro na Expo, sempre seguindo com interesse as intervenções públicas de Soares. Até que, no ano passado, para minha surpresa Soares se candidatou de novo a Belém. Com 81 anos. Idade em que tantas pessoas idosas nada mais fazem, infelizmente, pela espera do momento em que descerão à terra. Soares, no entanto, sempre com o seu sorriso, canditava-se por Portugal. Hoje percebi mais do que nunca isso. A sua consciência cívica assim o mandava. Durante anos outro político famoso o acompanhara paralelamente. Aníbal Cavaco Silva de seu nome. Um candidato cuja vontade de chegar a Belém é sabida desde que perdeu as eleições de 1996 contra Sampaio. Mário Soares candidatou-se porque não podia aceitar que Cavaco chegasse a Belém como "salvador da pátria". Algo que o ex-primeiro-ministro PSD não é. Muito pelo contrário.
Mário Soares candidatou-se contra o seu antagonista de sempre. Onde de um lado Soares pode oferecer um sorriso, do outro é vendido uma figura de cera. Esfíngica e de personalidade distante. Onde de um lado está alegria do outro está um aspecto aborrecido. Mas, mais importante que tudo, Soares é uma ideia de Portugal. Tal como Cavaco é outra ideia do país. De um lado é a ideia de um país com um projecto de futuro, que muito passa pelo empolamento da nossa estima (infelizmente somos um povo auto-depressivo, fenómeno imanado talvez desde longos séculos). Soares é, também, um projecto de presidência social. Um presidente do povo e para o povo. Algo que Cavaco Silva nunca foi nem será. Soares é um projecto de tolerância e civismo para Portugal. Mais importante que tudo: um projecto de memória. Algo que Cavaco Silva, como primeiro-ministro, revelou não conseguir ser. Cavaco é o sinal supremo de um povo mesquinho, ignorante e ignóbil na minha opinião (depois de ter lido e comentado isto mais o acho). Com ele na presidência estamos condenados a um regresso a um tipo de democracia apodrecida. Se ele é visto como uma espécie de "messias" que nos pode tirar da crise, muito se deve à espera que o povo português desde Alcácer-Quibir tem feito por um "salvador" que nos livre das "espanhas" que lá no fundo habitam a nossa alma. E que nos conduza a uma "grandeza" perdida, mas no fundo sonhada recuperar no íntimo de um povo. Cavaco conseguiu passar a mensagem que poderia ser um "escolhido". Ao contrário de Soares. Que apenas quer ser eleito porque melhor como ninguém sabe representar os portugueses. Sem falsidades.

A escrita vai longa. Mas o cansaço está a atabalhoá-la e a dificultar a minha explicação das ideias. Muito mais haveria a dizer. Espero ter nova oportunidade. Apenas quero acrescentar uma coisa - caso Cavaco seja eleito domingo, na primeira volta, expicarei isso como uma ingratidão do povo português. E um problema de falta de memória. Algo de muito grave. E de alarmante para a democracia portuguesa.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá Duarte!

Gosto de te ver activo no ideias e pensamento. Aproveito o espaço e o momento para, uma vez mais, te dizer que admiro a forma como estás na política!

Abraço
Ivo Adão

8:39 da tarde  

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