terça-feira, maio 09, 2006

Da memória dos locais

Ao longo desse caminho chamado vida, qualquer pessoa transporta em si a memória de locais. Sítios recordados intermitentemente, onde a alma vagueou na infinitude de sinais. Por motivo nenhum, é natural a lembrança de espaços físicos pelo nosso corpo percorridos. Uns onde a felicidade assomou. Outros onde lágrimas raivosas aos olhos saltaram. Ou talvez onde ocorreram misturas de sentimentos opostos.

Aconteceu-me, por estes dias de começo de primavera, recordar-me com insistência de uma certa praça. Uma praça perdida algures na baixa do meu Porto natal. Um espaço não muito amplo. Um pouco abafado, até, pelos edifícios e altas árvores no seu centro. Inestético talvez seja o adjectivo correcto para a caracterizar. Mas, ao mesmo tempo, tão bem esta praça foi conhecida pelos meus passos. Cada pedra, cada barulho, cada luminosidade, cada cheiro por mim foram sentidos ao longo de anos. E isso levou-me a perceber que toda a praça é um microcosmos de sensações e sentidos. Um local recheado de segredos. Onde tantos sorrisos… tantas angústias… tantos revolucionários e poéticos pensamentos me aconteceram. E numa destas recordações sonhadas, minha alma viajou sobre a cidade granítica. E, quando me apercebi, estava de novo naquela praça do centro do Porto. O tempo estagnara. As folhas das árvores pararam de balançar ao gosto de uma suave brisa. Regressara a um local da minha vida.

É uma praça, uma praça cheia de cor e edifícios singulares. Quem a ela chega pela primeira vez – qual estranho vindo de local desconhecido – estaca à procura de um sentido, de um destino. Para à praça se chegar vários caminhos existem. O viajante vindo do sul, de costas para a Torre símbolo da cidade caminha. Junto a essa rua que na praça desagua, encontra-se à direita o começo de uma viela escura. Ao fundo, tapando a possível saída, está uma pequena capela. Lembra esta paisagem os tempos em que a cidade num espírito de grande aldeia vivia. Mais acima, paralela à viela sem luz, encontra-se outro caminho para a praça. Este de estreitos e sujos passeios. Um edifício desta rua o Porto Industrial recorda. Sinal dos tempos que passaram e jamais irão voltar. Existe ainda, como que escondido, um quarto caminho. O mais difícil e mais íngreme de percorrer. Uma estreita e sinuosa viela sem passeios, mas que ganha em ser o único percurso que remete o viajante directamente no centro da praça.

A praça está rodeada de edifícios grandes, com alguns pequenos misturados para o ritmo urbanístico quebrado poder ser. Uns são antigos. Outros modernos. Quem chega vindo do primeiro caminho, entrando como que de lado na praça, vê á sua frente três edifícios. O primeiro, a contar da direita, é uma pequena igreja de um culto não católico. Ao lado dela, encostado está um inestético e grande edifício branco. Apesar das várias janelas, não parece lá dentro vida haver. Depois deste edifício, no canto da praça, está um velho edifício cor-de-rosa de dois andares. A sua imponência é abafada pelo prédio branco, e pelo vazio que se projecta do outro lado deste, já para lá dos seus muros e fora da praça.

Por ser um rectângulo mal formado, a praça ganha uma nova perspectiva em cada caminho. Quem vem da rua estreita de sujos passeios não se apercebe imediatamente do edifício cor-de-rosa, nem do branco nem da pequena igreja. No passeio que começa do lado direito deste, pode-se vislumbrar, um pouco por entre as árvores que o parque de estacionamento rodeiam, edifícios antigos e regulares. Desta perspectiva, a praça parece clássica e bem composta. Mas o possível viajante, calcorreando o granítico e irregular passeio à esquerda, junto ao edifício cor-de-rosa, se olhar um pouco em frente, vê um grande prédio na perpendicular. Prédio novo, cheio de estórias e sem história. É um hotel. Um local de descanso para viajantes extenuados. Que melhor praça podia acolher um edifício destes, senão esta praça perdida no Porto, praça fechada sobre si como repouso íntimo de alguém que procurou e não quer mais achar. Praça de várias perspectivas, que ao lado direito do hotel tem, como que esquecida, uma pequena esquadra. Talvez a zelar pela segurança dos viajantes da praça. Talvez a zelar pelos sonhos angustiados que à noite percorrem os caminhos tortuosos, quais fantasmas sem esperança encostando-se no rebordo das altas árvores inertes.

Se os seres humanos pudessem voar, muitos teriam certamente curiosidade em flutuar sobre a praça para uma perspectiva nova poderem ter. Certo é que voar é algo que o ser humano não consegue. As gaivotas aterradas nos candeeiros parecem desafiar os homens para tentarem também o seu voo. Mas este feito não está ao alcance do corpo humano. Da alma talvez. Mas mesmo essa tantas vezes parece antes querer descer ao inferno. No entanto, o velho edifício cor-de-rosa e o edifício branco por um pontão se encontram ligados. Desse pontão vislumbra-se grande parte da praça. Espelhada, esta passagem parece vista de farol ter. Ora, se algo pudesse de dentro iluminar aquele corredor sobre o vácuo, talvez a luz chamasse a atenção dos viajantes. E, se essa luz porventura existisse, podiam reparar que do lado de dentro desse pontão um vulto se acha.

A praça e as suas histórias sem memória – memória talvez só recordada pelas árvores em torno do parque de estacionamento – dariam certamente um romance. Mas para a um romance vida dar, personagens são precisos. Um engenhoso homem de letras talvez se lembrasse de criar personagens amorosos nos prédios de habitação. Mas provavelmente a sua arte podia igualmente criar personagens complexos utilizadores do parque de estacionamento por exemplo. E a partir de um pequeno acidente criar uma trama romanesca. E porquê descurar o hotel, já que estes locais propiciam intensas histórias na literatura. E se o possível escritor preferir, sempre pode escrever um romance policial. Basta, para isso, mergulhar sua inspiração ali na esquadra da esquina.

Mas, o possível leitor dir-me-á que sempre se pode pegar no vulto daquele pontão e transformá-lo em personagem romanceável. Sim, aquele vulto solitário talvez possa contar estórias e memórias. Podia-se, até, criar uma tentativa de texto poético em torno da sua figura. Afinal, tantas possibilidades há de escritos sobre um local por onde passa diariamente tanta gente, perdido no interior da cidade. Esse texto poético, mas não lírico, a ser escrito poderia relatar o olhar do vulto sobre a praça. E a narrativa da sua visão poderia começar por aquele tema tão recorrente nas conversas vazias que tantas vezes as pessoas têm entre elas todos os dias – o tempo.

De facto, aquele vulto já viu por muitas vezes o tempo passar ali na praça. Daquelas janelas é possível acompanhar os cursos perdidos das horas. A luminosidade ímpar dos meses que o verão anunciam. Podemo-nos maravilhar com o modo como o sol imprime colorido às casas e às gentes. Ao verde das árvores da praça e às roupas de estio usadas pelos jovens que habitam a praça durante o dia. Igualmente sublime é a cinzentude das chuvosas tardes de Inverno. Mesmo ali do interior do pontão, onde o frio é companhia mas não a chuva, o tempo de Inverno parece à praça e ao resto da cidade granítica trazer paz. E as cores dos edifícios orgulhosos escuras se tornam com a humidade. E neste quadro todo, a cidade fria parece de contentamento sorrir.

Nessas tardes invernosas, quando está vento, as árvores balouçam no vazio. Com a água da chuva, os buracos da calçada e da estrada ratoeiras se tornam. E o vulto permanece no pontão. Solitariamente, olha para o espectáculo da natureza sobre a praça. Talvez pense no destino das coisas. Do tempo que passa. Ou talvez se recorde dos fins e tarde também de Inverno em que há sol. Cedo escurece nessas ocasiões. O vulto lembra-se como aquela luz de Inverno sem chuva rapidamente se retira da praça. As luzes ténues em volta do parque de estacionamento começam a aparecer. E, nas sextas-feiras ao fim de tarde, este cenário parece mais vazio. É fim-de-semana. A praça morre desesperada ao aproximar de dois dias sem vida. E um imenso vazio o vulto sente. Os prédios tão dissemelhantes ligados pelo pontão ficam em silêncio. Só resta ao vulto temporariamente retirar-se. Talvez segunda-feira de tarde chova. Então o vulto regressará à janela para a tempestade contemplar. E, quando aí estiver, reparará que nessas chuvosas tardes de Inverno uma gaivota pousa no candeeiro junto à esquina do edifício cor-de-rosa, ali mesmo a um metro do pontão. Estática, orgulhosa, a gaivota enfrenta altiva a tormenta. Pela chuva não se deixa abater. Olha-a desafiadoramente acreditando que o sol voltará. Que de novo voará sobre a cidade grasnando de contentamento. Nesta contemplação da gaivota, o vulto pensa – Até quando posso ser uma gaivota? Poderei um dia voar também sobre a praça nas ternas recordações do futuro? A memória afectiva é como este pássaro que acredita na luz dos dias claros de Maio. Incertezas me invadem e não me deixam percorrer suaves pensamentos. Aguentarei a intempérie firmemente… ou lá fora nas poças cairei e a força faltará para me levantar…Não será melhor cair de joelhos na calçada molhada. Sentir pedaços de lama salpicarem-me a cara, ser pela chuva esmagado do que levantar a cabeça…?

O vulto distrai-se então desta sua visão. Olha para o lado esquerdo. Está ali, ao seu lado, outro vulto… outra pessoa. Um rosto sem emoção também olha a praça sob a tarde chuvosa. Os olhos, inexpressivos, parecem a gaivota também contemplar. O primeiro vulto olha bem para esses olhos, e começa a seguir com a cabeça o horizonte deles. Fixaram-se no candeeiro. Mas a gaivota já lá não se encontra… já não chove também. Está uma tarde quente de Maio. A luz invade o interior do pontão. O vulto vira-se para o lado esquerdo. A outra pessoa já lá não está. De repente, apesar da solidão, sente que tem companhia. Passos rápidos parecem atravessar o pontão e seguir de um edifício para o outro. Sussurros ouve. Risos também. Tantas pessoas em torna de si. Mas não as vê. Naquele momento, o vulto, materializando-se todo no seu ser, percebe que é o momento de partir. Escolher um dos caminhos que agora parecem querer fugir da praça. O pontão abandona. Para um dos edifícios sai. Mas antes, tem este pensar – Voltarei a cada sopro do vento. Negarei o adeus. E na infinitude do tempo talvez ocupe de novo o meu lugar de guarda deste pontão sobre a praça. Sem perceber o alcance das suas palavras interiores, nem o porquê de as ter pensado, o vulto afasta-se. E parte para o seu destino.

Praça perdida para as ilusões. Ali houve alheamentos e florestas de vozes perdidas. Sentimentos incomunicáveis transportados em suaves peles de mulher ensolaradas pela primavera. Praça de passos perdidos e sem sentido. Onde algumas vontades foram fracas e outras fortes. Percorrer esta praça foi para tantos um momento de catarse para o resto de longas caminhadas pelas cidades humanas. Cidades que cada um transporta em si. A complexidade dos lugares não deixa por vezes perceber a memória afectiva que por estes temos. O tempo passará e, um dia, um viajante que pela segunda vez passe pela praça, reparará que transporta em si o inexistente levado pelo tempo. Ouvirá então vozes e risos e promessas varridas pelo tempo. E lembrar-se-á que tudo passa mais rápido do que se imagina. E ao questionarmo-nos do porquê das coisas repararemos que as coisas não têm explicação.

Mas, alguém está a sair da praça. Dirige-se àquele primeiro caminho. Aquele que tem a torre barroca ao longe. É o vulto que estava no portão. Ao começar a percorrer essa rua que pelas oliveiras passa, estaca. Não resiste a olhar para a praça. Vira-se. A praça contempla como se fosse a última vez que visse aqueles edifícios. Em todos um significado busca. Até que pára o olhar no edifício cor-de-rosa. Sem saber porque razão conta quantas janelas brancas tem. Depois olha o local onde está o pontão. Donde está não o consegue ver. Devagarinho, enquanto olha, um murmúrio lhe sai da boca. Mas tão baixo é, que não se percebe se é um pedido de perdão para um crime do qual não foi autor, ou se “adeus” simplesmente disse. Ligeiramente um braço levanta. Com um gesto terno saúda a praça e especialmente aquele local dali invisível. Depois volta-se. Um sorriso surge-lhe no rosto. Ao começar de novo a andar, a cabeça ainda volta. Tem ainda esperança de ver o pontão, como se sentisse que algo importante ali deixara. Mas dali nã se consegue mesmo ver o pontão. E se o conseguisse ver, talvez se espantasse. Porque como rei sem trono, um vulto estático ali permanece, a contemplar aquela praça poética sem lirismo.

A primavera marcha sem descanso para o seu fim. Está calor. O tempo por vezes ajuda a recordar momentos passados. E ajuda a recordar locais da nossa vida. Outras vezes, à noite enquanto dormidos, somos transportados para sítios fantásticos. Mas outras vezes parecemos no tempo viajar e regressar a locais passados. Essa é a nossa memória dos locais. E mesmo que estes acabem, em nós permanecem. Nos últimos tempos tenho-me, sem saber muito bem porquê, recordado de uma certa praça onde passei bastante tempo da minha vida. Uma praça, uma praça algures na minha cidade natal. Quem sabe se parte de mim ainda por lá não vagueia…