quarta-feira, março 26, 2008

Porto Avenida dos Aliados, Cap II, parte 1

Uma rotina inquebrável leva a pensamentos pouco graciosos

Sempre de cima para baixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita. Mais ou menos [mais ou menos... que seca de expressão... não há melhor?] é esta a rotina chata e incompetente do João Firmino Alves, JF para os amigos [para alguns amigos] Firmino apenas para outros, apesar de este nome ser apelido poucos se aperceberam, mas também para quê contrariar?

Todos os santos dias [santos...que ironia] excepto aos domingos ou quando se encontra fora da cidade a passar na Avenida dos Aliados. A pé, de autocarro, a sair do Metro, a subi-los, a descê-los, vindo de 31 de Janeiro (também conhecida por Rua de Santo António [uma rua conhecida por dois nomes, que pitoresco...], a vir dos Clérigos, a cruzar a Avenida vindo de Passos Manuel e dirigindo-se a Ceuta. Tanto já conhece da Avenida que deixou de a ver. Farto está de passear, correr, subir e descer a avenida, passar sempre pelo mesmo sítio. Que chatice diária, pensa ele tantas vezes. «Tenho que arranjar outros caminhos, o solo dos Aliados já gastou demasiado as solas dos meus sapatos». Mas não arranja e tudo se repete diariamente.

Toda a cidade parece confluir como um rio para aquele Porto. Câmara em cima. Cardosas ao fundo. Estátuas dispostas por ali fora [são quatro não são... a do rei, a menina da fonte ou lá como se chama, a dos miúdos, acho que é da Primavera que se diz chamar e a do Garrett... aquele que dizia mal da cidade e mesmo assim lhe fizemos uma estátua... que lindo]. Não se lembra João Firmino de ali ter tido uma grande emoção [nem mesmo a comemoração dos campeonatos do Porto ali têm grande piada].

Sobe Ceuta, vira à esquerda, anda mais um bocado. Aproxima-se do destino, se destino tiver. Vai ver os “tascos” também conhecidos por livrarias e alfarrabistas. Olha para o telemóvel para ver as horas. Ainda é cedo, a tarde está quase a sair do início. Ninguém lhe liga, ninguém lhe manda sms. Daqui a pouco também passará pelo empregozito que tem para saber se há alguma novidade, se há trabalho. Anda tudo morto [expressão de gíria um bocado infeliz, não acham?] por algumas notícias bombásticas. Mas no fundo está tudo na mesma. Nada muda apesar de parecer. Caminha a passos largos por José Falcão. Cruza-se com um conhecido do pai. Cumprimenta com cortesia, não vão dizer desta vez que o João Firmino é arrogante e mal encarado. Mas uma pessoa também não anda de espelho ao lado quando caminha sozinho. E não tem que reparar em toda a gente, porque às vezes anda com o pensamento cheio de nada. Tantas coisas em que pensar e às vezes nem um pensamento se lembra ao fim do dia. Apenas sente e pressente mas estas são histórias para outro capítulo, quando esta estória sem história tiver pernas para andar (tanta coloquialidade que se emprega neste texto, esperamos não irritar o leitor).

Chega ao prédio do jornaleco de bairro em que trabalha. Apanha logo o director meio tirânico meio cómico à porta: Há trabalho João Firmino... Que se passou?... Tens que entrevistar o novo presidente dos Bombeiros do Porto, é cá da freguesia, e mesmo que não fosse sempre é uma entrevista interessante... Vou pensar nas perguntas, para quando é?... Amanhã... Micro ta disponível?... Sim... Vê lá se fazes uma merda de jeito... «este gaijo tem mesmo a puta da mania que é bom jornalista – pensa João – mas não passa de um frustrado que não conseguiu manter-se nos jornais por que passou, nem pelo JN, também teve azar é certo com o fecho do Comércio do Porto, mas também tou praqui com pieguices, o gaijo nem escreve nada de jeito...». E assim se senta a uma das poucas secretárias daquele quase cubículo do primeiro andar. Em frente a janela convida-o para voltar à rua. «Mas também fazer o quê?» Não tem dinheiro para fazer compras, nem para alguns livrozitos que gostava de tentar ler. Meio sustentado pelos pais, meio pelo jornal que sobrevive à custa das assinaturas do estrangeiro [não pensava que existissem tantos emigrantes] e por alguns beneméritos meio saloios da freguesia e das freguesias vizinhas mais uns pequenos patrocínios que arranja aqui e ali, João Firmino às vezes não vê grande futuro na sua vida de momento. Apesar disso, as coisas talvez estejam prestes a mudar... Ele sente isso, que não ficará agarrado a esta rotina estúpida e mesquinha. Mas quando, isso já não sabe... «Se calhar logo tomo café com o Carlos, apetece-me arejar, daqui a pouco ligo-lhe». E depois disto, começa a pensar nas perguntas... [Como chegou a bombeiro, que perigos grandes já sentiu? Preocupa-o as ruas estreitas do Porto, não causam problemas?] Levanta a cabeça João. Semicerra os olhos. Suspira profundamente sem que os restantes colegas do jornal (mais dois e o director) se apercebam...