segunda-feira, dezembro 18, 2006

O Castelo

Algures escrevi sobre castelos. Mas do contexto não me consigo recordar. Lembro-me apenas de brevemente me inspirar na experiência de Kafka, autor desse romance supremo com o mesmo nome deste post. Nesse romance inacabado - mas apesar de tudo tão perfeito, tão visionário - K. é um agrimensor chamado à aldeia sob o Castelo do Conde Oeste Oeste (que na tradução alemã se assemelha a "nada nada", segundo Milan Kundera). Mas quando chega, primeiro não sabem ao que veio. Depois, reconhecem que o chamaram mas não sabem para quê. E o romance flui, a partir daí, na busca do agrimensor pela razão da sua chamada. E ao longo do romance depara-se com traições, encontros amorosos, surrealismos vários. Tudo num tom jocoso, que é defendido por Kundera - o autor da Insustentável leveza do ser defende que Kafka não é um autor sério e angustiado como o leram ao longo do século XX. Antes um autor do absurso, da comédia da vida. As descrições de Kafka, se lidas com "leveza", acabam por ser um quadro cómico. Veja-se o caso do primeiro encontro no bar da aldeia do castelo entre K. e a sua amante. Ou as páginas absurdas onde surge a gordíssima personagem da cantora de ópera no seu romance América.
Mas queria escrever sobre castelos e perdi-me a pensar em Kafka, minha paixão literária maior no romance do século XX. Pensava em castelos reais e acabei a reflectir sobre castelos absurdos do universo da literatura.
Quando era pequeno, viajei muito pelo interior do país de regresso a uma pequena cidade provinciana. Seguia de comboio deste meu Porto granítico de meu sangue para regressar ao bucolismo que também algum sangue me dava. Lembro-me, com uma memória espantosamente viva, que o que mais me fascinava na viagem era a visão de um castelo no meio do rio. Sempre esperava a visão desse castelo de água rodeado em cada nova viagem. Fosse a de ida. Fosse a de volta.
Anos se passaram. O tempo, como ventre assassino das coisas, foi fazendo bens e pessoas crescer e encolher, surgir e desaparecer. E jamais voltei a ver o castelo. À aldeia e à cidade, destino dessas minhas viagens, continuei a ir. Mas já não de comboio...
Já neste ano decidi-me. Tenho que voltar a ver o castelo. Saber se ele ainda está lá no meio do rio. Sei que ele é um símbolo para mim. Uma espécie de alfa do passado. Símbolo da infância, da dimensão dos sonhos que começavam a surgir e que comigo continuaram. Símbolo de força. De coragem. Talvez todos estes juntos. Talvez nenhum deles. Sei apenas que sinto um desejo imenso de rever o castelo. Nem que seja num fugaz olhar na passagem do comboio.
Depois de alguns adiamentos, a data foi marcada. Amanhã espero ao início desta tarde de inverno poder rever o castelo. Sózinho fisicamente na viagem partirei. Mas sei que dentro de mim vão todos os valores guardados por aqueles que me educaram e que de mim creram. Porque talvez seja essa o meu símbolo de castelo. O meu ser que guarda todos os valores com que me educaram e não prescindo. Que guarda a memória dos momentos bons que ficaram e a raiva dos momentos maus que marcaram. E assim me destino pelas batalhas do infinito, guardando o castelo que será meu ómega. Solidificando meu ser a cada ataque inimigo. Abrindo os portões àqueles que por bem vêm. No lugar de cada tijolo partido pelo inimigo à espreita - porque os há - dois solidificar. À chegada do convidado instalá-lo na torre de menagem, e oferecer-lhe o coração.