Regresso ao começo do mundo
Jeff McCloud está cansado. A sua vida fôra composta de adrenalina. Exigência da profissão que escolhera - homem de rodeos. Montando touros bravos, Jeff encontrara o modo de ter os seus luxos. De viver fácil. Autêntico lusty man. Mas agora, em mais um rodeo, os seus olhos não são os mesmos. Uma certa desistência parece amolecer o seu corpo... O rodeo começa. Jeff não aguenta muito tempo em cima do touro bravo. Fica estendido no chão. A multidão, habituada a ver nele um campeão, espanta-se e assobia-o. Passa-se algum tempo. Jeff sai do balneário. Atravessa a pista do rodeo solitariamente. Coxeia. Nas bancadas ninguém já se encontra. Toda a sua presença ali é como se se anulasse. Jeff sabe que o seu tempo como homem de rodeos acabou. Mas a sua vida é um vazio. Assim, para onde ir.
Esta é a primeira cena daquela que é para mim uma das obras-primas do cinema. The lusty men (1952), realizado por Nicholas Ray, é daqueles filmes simples que muito dizem. E que na nossa memória continuam a ser admirados. As duas primeiras cenas do filme perseguem-me muitas vezes. A primeira é a apresentada no primeiro parágrafo deste texto. A segunda é, para mim, das mais brilhantes cenas de Cinema alguma vez concebidas. Só mesmo possível devido ao génio demoníaco de Nick Ray. Autor de outras obras esplendorosas da sétima arte como Rebel without a cause - Jimmy Dean no seu melhor - ou Bigger than life.
Jeff McCloud sai do camião que lhe dera boleia. O seu aspecto continua o mesmo. Cansado. Olha para todos os lados. Não com o olhar de quem tenta perceber onde está. Antes com olhos e que tentam reconhecer um sítio há tanto tempo perdido. No ermo onde Jeff se encontra há também uma casa. Levemente sorri ao olhá-la. A casa é velha. Parece não ser utilizada à bastante tempo. Jeff aproxima-se da porta. Tenta abri-la. Mas esta não cede. Para além da sua força física, outra força misteriosa parece impedir a passagem àquele lar. Jeff desiste. Prefere contornar a casa. Chega às traseiras onde não há nenhuma porta. Mas não é isso que ele procura. Outra coisa o leva lá. De repente, baixa-se, e agilmente esgueira-se pelas fundações da casa. Já debaixo das tábuas podres, e com a ajuda dos cotovelos, chega a um ponto onde, escondidos numa reentrância da madeira, encontra os seus objectos de infância. Um livro de folhas gastas pelo tempo. E uma pequena pistola de brincar já ferrugenta. Jeff sorri comovidamente. Regressou a casa. Ao ponto de partida. O começo do mundo, onde um trilho começou. O regresso no entanto, vem revelar o falhanço desse trilho. E o desejo extraordinário de uma alma só, que, apesar do dinheiro e da fama, nada teve. Pudesse ele regressar à infância e trilhar outro caminho. Mas isso é impossível. Nada resta agora senão a amargura do falhanço que lhe queima o coração.
Tenho-me preocupado, como podem ler noutros posts, com a ideia do eterno retorno (ou senão com ela com algo parecido). Milan Kundera interpreta o eterno retorno como o desejo do Homem em poder repetir a sua vida infinitamente, mas de cada vez com o conhecimento que adquiriu nas vidas anteriores. É algo impossível. Claro. Por isso o Homem vive no limbo de uma realidade que ele constrói em parte, mas que a acção dos outros também condiciona. Somos actores de uma peça de teatro. Mas que não tem ensaio nem repetição. Por isso cada gesto em vão não pode ser repetido. Cada vez que nos arrependemos de algo não podemos reparar totalmente. Porque a "reparação" é sempre condicionada pela memória do falhanço da vez anterior. Que podemos então fazer? Pouco. Viver. Apenas viver. De cada vez que falhamos, e nos tornamos um Jeff McCloud em potência, podemos sempre ir até ao sítio onde tudo começou - nem que seja no interior da mente - mas jamais podemos recomeçar de maneira pura. Podemos reparar ao máximo onde erramos. Mas o tempo deixa marcas. As sequelas destas perseguir-nos-ão.
Podemos apenas fazer uma coisa. Que não muda o nosso falhanço, mas que nos ajuda a dar algum sentido á vida. É ensinar um nosso próximo a não errar. Jeff irá isso fazer. Já que a vida dele falhou, ao menos que a sua experiência sirva para outro não errar. Nem que esse gesto lhe custe a morte, ele sabe que assim poderá dar sentido à sua existência. Mas adiantei-me na interpretação do filme. Saltei até à última cena. Mais havia para dizer. Mas se calhar percorreria outras ideias que hoje não me apetece abordar.
Para além da soberba realização de Nick Ray, o filme conta com Robert Mitchum numa interpretação magistral (é ele Jeff McCloud) - só escrevo sobre ele, mas podia perder-me a falar das qulaidades de outros actores. Um filme a rever. Sempre...
The Lusty Men
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