quinta-feira, março 27, 2008

Aurora Negra

És o nascer de um dia de primavera. Irrompes na manhã ainda sem sol descendo ao sentido da terra nas gélidas gotas do orvalho. Fundes-te na natureza com os primeiros raios do astro rei. Irrompes no teu calor oferecendo-o ao dia que principia.

Tornas complexo o simples reinventando a linguagem dos sentidos em cada frase, em cada olhar. Cada minuto a teu lado vivido é momento sonhado. Cada ausência tua é um regresso ao lado gélido das palavras, dos sentidos perdidos. Teu olhar foge para paragens distantes buscando dor nos afectos sangrentos.

Busco um nome para ti na tua indefinição. Procuro a palavra que associe a fragilidade do teu plácido rosto com a força flamejante da tua auréola. Mas não encontro o que quero. Irrealizável é associar a imensidão do calor que paira no teu sorriso primaveril ao olhar invernal dos teus olhos.

Porto Avenida dos Aliados cap. I, parte 5

Uma apresentação simbólica do “nosso herói”



Chamar herói a alguém que nada de especial fez na vida e pela vida é algo apenas concebível na literatura. Mas o curioso é que uma literatura recente, séculos XIX e XX em diante, começou a privilegiar o ser comum, o um entre muitos, como personagem interessante para a arte (ou artes) do romance. Dostoievski, com os seus personagens trágicos e patéticos, analisou como ninguém as emoções humanas, seus vícios, disciplinas e indisciplinas. Mais tarde Kafka pegou em homens comuns e fê-los ser perseguidos por forças exteriores a eles. E, pior que tudo, retirou-os do universo da solidão, universo tantas vezes sereno e necessário ao Homem. Atente-se, como exemplo único (já que não nos queremos alongar muito pois queremos apresentar João Firmino Alves, ser comum desta tentativa de romance) a tentativa falhada de amor atrás do balcão de K. com a empregada que acabara de conhecer no bar da aldeia debaixo do Castelo do Conde de Oeste-Oeste. Ainda nessa altura, outras tentativas de apresentar o homem comum mergulhado na sociedade se seguiriam, como é exemplo o Franz Biberkopf de Döblin (e mais tarde de Fassbinder, mas noutra arte). Em Portugal, neste país à beira mar plantado, exemplo é também o personagem literário Bernardo Soares, guarda-livros na Rua dos Douradores em Lisboa, parte pensado e parte sentido por Pessoa nos seus escritos de desassossego.

Mas passemos a apresentar ao leitor o nosso “amigo” João Firmino Alves, pensado humildemente abaixo dos personagens dos grandes autores. Firmino por parte da mãe. Alves por parte do pai. Tem vinte e tais anos, ao certo não interessará a idade ao leitor. É informação sem importância porque o que vai importar deste personagem, ou cromo como agora também se diz, serão as suas emoções. Algumas nobres, outras patéticas. João nasceu no Porto e aqui sempre viveu. Às vezes passava quando criança longos verões na aldeia da avó. Verões que o marcaram pela sua inocência. Viveu o resto dos anos, até agora, primeiro na zona da baixa, ali perto dos Aliados por onde quase todos os dias passeava (parando bastas vezes na Estação de São Bento para ver os comboios), depois na zona alta da cidade. Mas os seus afazeres académicos e profissionais levaram-no sempre à baixa, a cruzar os Aliados constantemente, como se todos os dias o seu desporto favorito fosse um mergulho na cidade natal que tanto dele já se tornara que por vezes tal já não suportava.

Mas deixemos estas breves informações, que nos próximos capítulos mais completas ficarão, e acerquemo-nos da sua condição física. Já agora ajudamos o leitor com uma ideia aproximada de como é nesta realidade ficcionada (por vezes mais interessante que a ficção da realidade) o nosso herói. João mede “ela por ela” um metro e oitenta. É magro mas a barriga salienta-se um pouco. Rosto redondo, olhos castanhos um pouco fechados coroados por pestanas pretas e salientes. Cabelo liso, não muito curto mas também não comprido. Veste casual apesar de ter sempre uma peça de roupa a mais do que o habitual em qualquer estação, vítima de ser um bocado friorento. Até no Verão às vezes anda de casaco, o que se arrepende nas suas caminhadas quando chega esta estação tendo por isso as mãos sempre ocupadas, o que o leva sempre a praguejar um pouco por estar demasiado calor. Hábitos que custam a mudar.

O seu percurso de vida, ainda curto (a não ser que a morte esteja perto, ainda não sei bem como esta estória vai acabar), é banal. Não falhou nenhum dos 12 anos de estudos pré-universitários. Gostou mais de umas disciplinas do que outras. Optou no secundário pelos campos das humanísticas. Para o desenho e matemáticas jeitinho nenhum tinha, diga-se de passagem. Mas para as letras até se sentia algo preparado. Por causa da crise de empregos que assolava o país («que raio de altura para nascer», pensava ele às vezes) optou por um curso superior meio técnico que lhe daria saída como jornalista ou coisa parecida. No fim do curso, em que teve os seus altos e baixos, mais estes últimos que os primeiros, achou-se na desconfortável situação de quase todos os jovens portugueses: o desemprego. Por sorte arranjou um part-time (assim chamado para não lhe terem que pagar salário inteiro) num jornal de freguesia, onde sentiu que nada do que aprendera em jornalismo lhe fazia diferença.

Sonhos? Como o comum dos mortais João tem os seus sonhos. Um deles é se calhar voltar à faculdade e tirar um mestrado ou, quem saiba, um novo curso.

Estas são algumas informações sobre o personagem. Personalidade, amizades, amores, vitórias e derrotas, mais passados e futuros seguem-se nos próximos capítulos.

quarta-feira, março 26, 2008

Porto Avenida dos Aliados, Cap II, parte 1

Uma rotina inquebrável leva a pensamentos pouco graciosos

Sempre de cima para baixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita. Mais ou menos [mais ou menos... que seca de expressão... não há melhor?] é esta a rotina chata e incompetente do João Firmino Alves, JF para os amigos [para alguns amigos] Firmino apenas para outros, apesar de este nome ser apelido poucos se aperceberam, mas também para quê contrariar?

Todos os santos dias [santos...que ironia] excepto aos domingos ou quando se encontra fora da cidade a passar na Avenida dos Aliados. A pé, de autocarro, a sair do Metro, a subi-los, a descê-los, vindo de 31 de Janeiro (também conhecida por Rua de Santo António [uma rua conhecida por dois nomes, que pitoresco...], a vir dos Clérigos, a cruzar a Avenida vindo de Passos Manuel e dirigindo-se a Ceuta. Tanto já conhece da Avenida que deixou de a ver. Farto está de passear, correr, subir e descer a avenida, passar sempre pelo mesmo sítio. Que chatice diária, pensa ele tantas vezes. «Tenho que arranjar outros caminhos, o solo dos Aliados já gastou demasiado as solas dos meus sapatos». Mas não arranja e tudo se repete diariamente.

Toda a cidade parece confluir como um rio para aquele Porto. Câmara em cima. Cardosas ao fundo. Estátuas dispostas por ali fora [são quatro não são... a do rei, a menina da fonte ou lá como se chama, a dos miúdos, acho que é da Primavera que se diz chamar e a do Garrett... aquele que dizia mal da cidade e mesmo assim lhe fizemos uma estátua... que lindo]. Não se lembra João Firmino de ali ter tido uma grande emoção [nem mesmo a comemoração dos campeonatos do Porto ali têm grande piada].

Sobe Ceuta, vira à esquerda, anda mais um bocado. Aproxima-se do destino, se destino tiver. Vai ver os “tascos” também conhecidos por livrarias e alfarrabistas. Olha para o telemóvel para ver as horas. Ainda é cedo, a tarde está quase a sair do início. Ninguém lhe liga, ninguém lhe manda sms. Daqui a pouco também passará pelo empregozito que tem para saber se há alguma novidade, se há trabalho. Anda tudo morto [expressão de gíria um bocado infeliz, não acham?] por algumas notícias bombásticas. Mas no fundo está tudo na mesma. Nada muda apesar de parecer. Caminha a passos largos por José Falcão. Cruza-se com um conhecido do pai. Cumprimenta com cortesia, não vão dizer desta vez que o João Firmino é arrogante e mal encarado. Mas uma pessoa também não anda de espelho ao lado quando caminha sozinho. E não tem que reparar em toda a gente, porque às vezes anda com o pensamento cheio de nada. Tantas coisas em que pensar e às vezes nem um pensamento se lembra ao fim do dia. Apenas sente e pressente mas estas são histórias para outro capítulo, quando esta estória sem história tiver pernas para andar (tanta coloquialidade que se emprega neste texto, esperamos não irritar o leitor).

Chega ao prédio do jornaleco de bairro em que trabalha. Apanha logo o director meio tirânico meio cómico à porta: Há trabalho João Firmino... Que se passou?... Tens que entrevistar o novo presidente dos Bombeiros do Porto, é cá da freguesia, e mesmo que não fosse sempre é uma entrevista interessante... Vou pensar nas perguntas, para quando é?... Amanhã... Micro ta disponível?... Sim... Vê lá se fazes uma merda de jeito... «este gaijo tem mesmo a puta da mania que é bom jornalista – pensa João – mas não passa de um frustrado que não conseguiu manter-se nos jornais por que passou, nem pelo JN, também teve azar é certo com o fecho do Comércio do Porto, mas também tou praqui com pieguices, o gaijo nem escreve nada de jeito...». E assim se senta a uma das poucas secretárias daquele quase cubículo do primeiro andar. Em frente a janela convida-o para voltar à rua. «Mas também fazer o quê?» Não tem dinheiro para fazer compras, nem para alguns livrozitos que gostava de tentar ler. Meio sustentado pelos pais, meio pelo jornal que sobrevive à custa das assinaturas do estrangeiro [não pensava que existissem tantos emigrantes] e por alguns beneméritos meio saloios da freguesia e das freguesias vizinhas mais uns pequenos patrocínios que arranja aqui e ali, João Firmino às vezes não vê grande futuro na sua vida de momento. Apesar disso, as coisas talvez estejam prestes a mudar... Ele sente isso, que não ficará agarrado a esta rotina estúpida e mesquinha. Mas quando, isso já não sabe... «Se calhar logo tomo café com o Carlos, apetece-me arejar, daqui a pouco ligo-lhe». E depois disto, começa a pensar nas perguntas... [Como chegou a bombeiro, que perigos grandes já sentiu? Preocupa-o as ruas estreitas do Porto, não causam problemas?] Levanta a cabeça João. Semicerra os olhos. Suspira profundamente sem que os restantes colegas do jornal (mais dois e o director) se apercebam...

domingo, março 23, 2008

múrmurio do fundo da alma

antes de eu desaparecer
terei que voltar
para vir agarrar
o último momento da perdida infância

ilusão triste que me levou à via da mágoa
vozes sem sentido que me chamaram para caminhos
de dor punição e ódio
a todas vos espantarei como espectros em que não volto a crer

deixai-me no momento último antes do adeus
regressar ao sonho plácido do futuro
chorando as mágoas de não ter seguido
o caminho sentido pelo coração