sexta-feira, maio 30, 2003

Também de um amigo nosso que anda em História na Faculdade de Letras do Porto no 1º ano, nascido em Castelo Branco por azar, ou seja, porque em 1984 os seus pais viviam aí, pediu-me para publicar um texto - ortodoxo, muito ortodoxo, diga-se de passagem - em que critica fortemente a nossa geração. Ele é uma espécie de historiador revoltado, embora de historiador tenha pouco e de revoltado tenha muito. Bem, ele para se acalmar de vez em quando escreve sobre monumentos do Porto. Algumas amostras desses textos serão publicados em breve.

Aí vai o texto do Carlos Eduardo Oliveira:

Portugal, país fatal
Um exemplo para o Mundo?



O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
[...]
Ruy Belo

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
[...]
Fernando Pessoa – Mensagem

Ás vezes julgamos que somos europeus. O pior é quando acordamos e percebemos que somos apenas o que sempre fomos: portugueses, algo desleixados, e pobres como é habitual.
José M. Fernandes
Público
06/03/2001
Um dia depois da queda da ponte de Castelo de Paiva, onde cerca de sessenta pessoas pereceram.

O sonho de Pessoa – o Quinto Império português – está longe. E parece-nos este cada vez mais impossível. De facto o nosso país desvia-se do percurso que deveria enfrentar para conquistar o bem-estar. Continuamos pequenos neste começo de milénio. E o futuro não promete ultrapassar esta horrível tendência. Por vezes surgem pequenas mensagens, como faróis ao longe num mar tenebroso, que nos indicam o caminho a seguir. Mas nós julgámos esse farol uma miragem. De novo nos perdemos nas trevas. Julgámos poder dar um exemplo concreto, entre tantos outros: dia vinte de Dezembro de 1999. Nesse dia o país inteiro presenciou a entrega de Macau à China. Macau, o último reduto do Império português. Foi o fim de uma era: o do Portugal universal. A partir dessa data o país devia ter olhado para dentro de si, para a sua condição, e reflectido nos «novos mares» que há agora a «conquistar». Mas nada se fez. Continuamos cada vez mais vazios...
Se não compreendemos mensagens como estas, porque será? Podemos dar resposta a esta questão se analisarmos melhor os portugueses. De facto, o português em geral é analfabeto. Somos um povo de cerca de dez milhões de incompetentes. Salvo excepções, é quase um facto. Podemos sustentar esta afirmação se analisarmos a História do século que findou. Quando chegamos a 1901, estávamos «vencidos da vida». Encontrávamo-nos sós. O Reino efervescia farto da monarquia que já não tinha fôlego para comandar o país. Em 1910 instaura-se a República. Desde esse ano até 1926 a instabilidade continua, caindo governos e governantes sempre em descrédito. Nesta última data há nova revolução. A tirania e a opressão passam a mandar. Surge, dois anos depois, um homem que iria tentar (e em muitos aspectos conseguiu) assassinar o país, embora o não soubesse: Salazar. Durante quarenta e oito anos (quase metade de um século...) estivemos "orgulhosamente sós" num Mundo que mudava radicalmente. A Economia mundial crescia, as mentalidades mudavam. E nós continuamos na mesma. Tantos anos de estagnação a todos os níveis. Em 1974 a Revolução de Abril abre as portas da liberdade. Foi apenas há vinte e sete anos...
O 25 de Abril de 1974 é, sem qualquer dúvida, a data mais memorável do século XX português. Uma poetisa, grande lutadora pelos ideais democráticos, refere num poema o seguinte verso: "as portas que Abril abriu". De facto, a Revolução abriu várias portas, bastante importantes para os nossos dias. Porém, esqueceu-se de abrir outras, ou então por elas entraram primeiro aqueles que não deviam. Na nossa opinião, a porta pior aberta foi a da própria liberdade, que implicava as transmutações sociais de Portugal. Hoje, os filhos e os netos de Abril renegaram o pai. Não por ideologia, mas por má educação. As causas da degradação social do país podem ser explicadas por vários factores. Primeiro: a Revolução foi demasiado brusca. Os portugueses adormeceram num dia debaixo da terrível opressão, no dia seguinte acordaram em plena liberdade. A euforia instalou-se. Segundo: passa-se à juventude, aos filhos, a ideologia liberal em pleno. Então, quem a tem em abundância gasta-a como quiser. Terceiro: os filhos de Abril passaram a ter diferentes modos de viver vítimas de não terem nada por que lutar (senão pequenas coisas materiais) estagnam a educação dos filhos. Não têm tempo para eles. A formação pessoal dos jovens começa a falhar. E mesmo a educação profissional falhou com a «massificação» do Ensino. O Ensino Técnico, onde se formavam electricistas, canalizadores, etc. com competência, foram eliminados do Sistema de Ensino. E hoje só nos saem analfabetos a nível técnico-profissional. Que exemplos destas causas podemos constatar nos nossos dias? Podemos ver uma geração onde a insensatez e a anarquia reina. É uma geração que não sabe respeitar os seus próximos. Uma geração onde o álcool e a droga são objectos de culto. Uma geração onde insultar e humilhar alguém é aplaudida pelos outros. Por outras palavras, é uma geração sem ideais, que não sabe olhar para o futuro. O jornalista Vicente Jorge Silva apelidou-a de "geração rasca". É--o efectivamente. Mas Daniel Sampaio, famoso psiquiatra, afirma que esta não é a verdadeira "geração rasca": é a dos pais. Foram eles que, com a euforia da liberdade, deram asas aos filhos para voarem ao paraíso. Não os acompanharam no voo. Os filhos acabaram por cair no inferno. Já não há tempo para eles. No entanto, para estes sentirem alguma coisa pelos pais, são «comprados» com telemóveis, computadores, automóveis, entre outras vontades materiais. Modificam-se os comportamentos, e o amor, esse sentimento que faz pais e filhos respeitarem-se, que faz o Homem compreender os erros e as verdades, desapareceu.
No Público de 09/05/2001 foi editada uma reportagem sobre a Queima das Fitas no Porto. O artigo mostra dados curiosos. Os estudantes gritaram "Educação esquecida, geração perdida". Referem-se à Educação profissional. Mas o slogan é mais apropriado à educação pessoal. Mais abaixo, podemos ler que, talvez, esta geração não seja esquecida, mas pelos maus motivos. Rita, estudante do curso de Jornalismo, refere que "a Serenata foi horrível, vi porrada e pessoas a sentirem-se mal... outros estudantes induzem outros a consumir álcool... deram a beber a um colega álcool etílico puro". Mas que maravilhas fazem estes futuros doutores. Certamente, quando chegarem à idade de ter o primeiro emprego, vão estar muito bem habituados. E se seguirem política e tomarem as rédeas do país, este vai entrar na via do «progresso».
Assim, um clima de anarquia e medo pelo futuro começa a lastimar a nação. Aliado à educação, para causas disso, está a violência dos centros urbanos. Não há dia em que se abra um jornal que não traga notícias sobre assaltos, violência, às vezes por ridículas somas de dinheiro. O perigo está em todo o lado, desde o centro das cidades aos bairros suburbanos. Um dia sair de casa será uma aventura. Com isto, outros problemas políticos e económicos e um pouco de interesses à mistura de minorias controladoras, o país está num caminho de insegurança prevendo-se um futuro grave. Com tudo o que se passa, é provável que um dia este clima se transforme, pela vontade geral, num sistema político de novo repressivo, mas que prometa acabar com os males. Talvez um Salazar se empoleire no poder. Talvez o 25 de Abril deixe de ser feriado nacional. Talvez...
De facto, hoje Pessoa desacreditaria o Quinto império. Ele constataria, se ressuscitasse, que o país vive minado de incompetência e de não o querer ser. Esta nação "à beira-mar plantado" está numa sonolência profunda. Dorme, Portugal, dorme, tu que podias ser uma pequena Alemanha se estivesse acordado. Dorme à beira do mar que outrora foi teu, mas que perdeste como em ti quase tudo está perdido. No dia em que acordares, esperamos que o choque de te veres lastimável não te leve a voltar a adormecer.
Uma prece lanço ao futuro: esperamos que a próxima geração tenha vergonha da anterior. Era bom sinal.


Carlos Eduardo Oliveira

É com prazer que apresentamos no Ideias e Pensamento dois poemas de João firmino Alves. este jovem poeta, nascido a 27 de Maio de 1981, nasceu cá no porto e é nosso amigo desde à 6 anos. Actualmente frequenta, na FLUP, o curso de LLM - Francês-português.

Depois de muita insistência, consegui que ele publicasse o seu poema premiado pela Escola Secundária em que andava, num concurso de poesia.

Espero que gostem:


Eu sou aquele que demais pensa,
Que demasiado sonha
sendo inútil para o mundo.
Sou aquele que viu as estrelas,
num claro dia de sol,
e que viu a luz do mesmo Sol,
numa noite sem luar.

Sou aquele que os outros
Diferente consideram.
Porém, pintei um retrato no infinito,
e compus música no silêncio.

Tentei isto mostrar ao mundo, falando-lhe.
Ele amordaçou-me…
Virei-me então para o mar,
E de novo contemplei ilhas imaginárias e o infinito.

Tudo porque quis ser diferente num mundo igual
e tarde descobri que assim ser era uma ameaça.
Ainda esperançado, pus uma máscara para passar despercebido
mas ela era tão perfeita que o rosto me moldou
ficando assim igual àquilo que não queria
que não passava de algo fingido que realidade se tornava.

Virei-me novamente para a Terra,
com a máscara na face colada.
Assim, fui falar com os outros
mas eles não falavam naquilo que eu queria.
Quase em lágrimas (que a máscara não mostrava) maldisse-me
De a esta geração pertencer
À qual não sei se nela marginal sou,
pois antes dela devia ter nascido, ou se sou,
o Primeiro de uma outra que está por chegar.

Conversem, conversem entre vós sobre assuntos mundanos.
Maior felicidade não há do que eles.
Continuem, continuem a conversar…
Eu terei durante a vida que aguentar
minha gigantesca solidão exterior
ao mesmo tempo que sinto a solidão interior a flamejar de algo
Sábio e límpido que amaria vos mostrar.

Homens, eu morrerei, vós morrereis também.
Vossas vozes calar-se-ão, a minha talvez fique
noutro que num espaço e tempo diferentes
também uma máscara terá,
para na fronteira intimista da realidade estar.

Homens, só por vós suspiro,
pois vos amei, sem vós me retribuirdes o sentimento.
Tudo por não saber eu quem ser.
Não descobri ainda se nasci demasiado tarde ou cedo
se meus sentimentos e ideias antiquados estão,
ou novidade são.

(A uma montanha subi para melhor ver o Sol
Mas quando ao cume cheguei já era noite
e com ela não podia em comunhão ficar.
Desci frustrado e com a sensação de jamais ter sonhos.)

Como gostaria eu de um claro dia de felicidade ter,
algo que um sorriso na face fizesse brotar.
Frustrado e sem sonhos fui dormir para casa,
esquecer o mundo mas idealizá-lo em fantasias.
E quando acordei, a máscara desaparecera.
Saí de casa a correr, para ao mundo escapar,
mesmo embrenhando-me nele.
Ninguém me reconheceria, e não me queria dar
ao trabalho de explicar quem era e porque diferente estava.

(E tu, simples, que conseguiste,
luz no meu pensamento perscrutar.
Tão rápido esse momento passou…
E vieste um abraço dar-me,
mas a seguir, viraste-me a cara.
Não reconhecias o verdadeiro eu
e pensaste que esse era máscara do falso.)

Tudo continuará complexo para esta humanidade
Cega e cruel, onde sempre nascerão,
filhos de pior estrela, mas que tentam,
e quase sempre conseguem,
mover montanhas e oceanos secar.
Portadores da palavra de um Mundo ideal
Senhores de uma grandeza interior.
para sempre grande e interior.



João Firmino Alves - 2000

Bernardo Soares, o autor do fabuloso e trágico Livro do desassossego, é o meu preferido. Este texto mostra como Pessoa/Soares, sabia o génio imenso que era e também o que lhe reservava o futuro: a grandeza...

quarta-feira, maio 28, 2003

Alberto Caeiro, o mestre, não pode ser esquecido:

VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.
.............................................................................
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
......................................................................
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
.....................................................................
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Agora, Ricardo Reis:

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.


Ricardo Reis, 14-2-1933

Hoje vou por neste blog alguns poemas e textos do maior escritor português de todos os tempos para vocês pensarem.
Pois é, Fernando pessoa dá que pensar, e hoje, dia em que abre a feira do livro, têm a oportunidade de comprarem um livro deste grande génio...

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



Álvaro de Campos, 15-1-1928

terça-feira, maio 27, 2003

Mandem-me sugestões, ideias e pensamentos para o meu e-mail!
Preciso de colaboração para fazer deste blog um verdadeiro sítio de ideias e pensamento.

Ganhámos a Taça UEFA. Eu, como portista que não viu a conquista da Taça dos Campeões, delirei com este feito. Ele só foi possível devido à dedicação e raça que os jogadores do FC Porto demonstraram ao longo da época. Mas os dois homens, ambiciosos e com sede de vitórias, a quem devemos mais agradever o feito histórico são o presidente J.N. Pinto da Costa e o treinador José M. Mourinho.
A eles, lhes agradeço, a oportunidade de ter vivido uma noite inesquecível. Bem hajam...

terça-feira, maio 20, 2003

O FC Porto de novo no limiar da História

Viena. 27 de Maio de 1987. A equipa do FC Porto, contra todas as expectativas, derrota o gigante bávaro do Bayern München. Amanhã, na sua terceira final europeia, o FC Porto entra, pela primeira vez, como favorito à vitória na final da Taça UEFA.

Ela era a melhor equipa da europa. E o seu treinador – Artur Jorge – e presidente – Pinto da Costa., estavam conscientes disso. E maravilhavam-se com a maneira como jogava a equipa. Era pura inspiração, pura magia de jogadores fenomenais como Paulo Futre, Rabat Madjer, João Pinto, entre outros. No entanto, só no jogo da final é que «os rapazes perceberam o seu valor», como diria mais tarde o treinador-adjunto daquele tempo, Octávio Machado. A partir dessa final, o FC Porto consolidou o seu estatuto de gigante europeu e mundial: ganhou a Supertaça europeia contra o Ajax Amsterdam e a Taça Intercontinental no famoso duelo na neve, em Tóquio, contra o Penãrol de Montevideu.
Ela é uma das melhores equipas da Europa. Mas hoje, 20 de Maio de 2003, véspera da final da Taça UEFA entre o FC Porto e o Celtic Glasgow, ela tem consciência disso. José Mourinho, o treinador que fez uma revolução no balneário depois da conflituosa gestão de Octávio Machado, acertou – finalmente - nas contratações. Foi buscar jogadores ainda jovens, com ambição em singrar numa grande equipa. Juntou-os a símbolos do clube das Antas – como Jorge Costa, Vítor Baía, Secretário e mesmo Deco – (re)fazendo uma equipa que já há algum tempo havia perdido a ambição, ou seja, a condição fundamental de uma equipa que quer ir longe na Europa. Por isso, amanhã, embora seja a terceira (ou quinta, se contarmos com as já citadas finais da Supertaça e Interconti nental) final internacional da equipa dos dragões, é a primeira em que o Porto é dado como favorito. E esse fardo adicional pode ser mau para os dragões. É que as equipas portugueses têm problemas sempre que são favoritas. E o grande clima de euforia que rodeia a equipa lusa pode traduzir-se, no final do jogo, numa profunda desilusão. Quem melhor exprimiu esta ideia, ontem à chegada do aeroporto de Sevilha, foi o ex-presidente da Câmara Municipal do Porto, Fernando Gomes. Segundo este político, integrado na comitiva azul-e-branca, «há um grande clima de euforia que, particularmente, não me agrada. Preferia que os adeptos e simpatizantes do FC Porto estivessem mais concentrados na possibilidade de perderem a final, pois em futebol tudo é possível». Amanhã logo se vê.
No entanto, mesmo sendo dado como favorito, José Mourinho já garantiu que a sua equipa estará concentrada do princípio ao fim do jogo no seu objectivo: trazer a taça que nunca passou por Portugal – ou melhor, passou no Estádio da Luz mas foi levada pelos belgas do Anderlecht, numa final de má memória para o SL Benfica. Além disso, o técnico dos dragões reconhece que «em todas as finais, a probabilidade de ser vencedor é de 50%, seja qual for o adversário», chegando a dar o exemplo do Real Madrid, afirmando que jogar contra esta equipa ou contra o Celtic na final é a mesma coisa, a mesma responsabilidade.
Inmdependentemente do clima que esta final desperta no coração dos portugues, o certo é que o FC Porto está a um pequeno passo de escrever mais uma página brilhante no currículo internacional do futebol luso. Ganhar a Taça UEFA será bom para todo o nosso país, e pode-nos encher o ego de orgulho. O FC Porto poderá, então, ser tomado como exemplo daquilo que de bom o nosso país tem mas desconhece: uma força na «vontade de poder» da alma lusa que há anos está adormecida. Contámos com esta ajuda da equipa tripeira.
Boa sorte FC Porto. Traz a taça, Jorge Costa!

A ansiedade invade-me

Sevilha tão longe e tão perto. A minha equipa dár-me-à uma alegria amanhã? Já não consigo dormir. E, nesses momentos em que o sono falta, penso na razão de amar tanto uma equipa de futebol - onze malucos a correrem atrás de uma bola - dizem tantos. Mas eu, pelo Fc Porto, não durmo, não como. É uma das minhas alegrias e razões de viver.
Amanhã. verei o Jorge Costa levantar a taça? Ai, a ansiedade está no meu corpo. Preciso distrair-me, não pensar nos azuis-e-brancos. Mas é difícil...

A Primeira mensagem

Pretendo que este weblog seja de reflexão sobre questões estéticas e filosófias. Além disso, quero dedicar este blog a um amigo meu, poeta, que publicará aqui os seus textos e poemas: Firmino Alves.

Textos de futebol também aparecerão, e irei apresentando, aos poucos, a História europeia da minha equipa, o FC Porto, que escrevo quando tenho algum tempo disponível.