quarta-feira, abril 23, 2008

Porto Avenida dos Aliados, Cap IV, parte 4

O que não é humano só nos dá mais força

Acho que estás errado pah, que assim ainda te lixas pah, tas errado... Já não sei muito bem o que é errado ou o que é certo, sinto-me confuso, um bocado cansado, perdido... [Mãe, mãe, onde estás?] Oh João, Joãozito, isso é natural, pah, não sei se percebes, isso é humano, ser confuso, ter incertezas, é humano... Se calhar é esse o meu problema, não querer ser humano não querer assumir o que sinto... [Mãe, mãe, procuro-te em cada momento do dia, penso em ti sempre que as coisas descambam e me sinto desamparado, mãe mãe onde estás tu quando eu sofro, quando a minha alma está perdida?] Tem calma meu, tudo se há de resolver...

Manuel levantou-se da cadeira. A conversa parecia já não ter muito para dar. Dissera tudo o que pensara ao pobre do João Firmino, sentado no sofá com a cabeça baixa. Manuel sentia-se também confuso. Por mais que tivesse convivido com Firmino, por mais momentos que tivessem passado juntos (ele era o seu melhor amigo, disso não tinha dúvidas), João sempre tivera algo de estranhamente misterioso embrenhado. Manuel sentiu por isso que alguma coisa havia ficado por dizer...

Bene, vê lá se descansas, vou andando... Xau aí...

Disse esta última frase um Firmino absorvido nos seus pensamentos enquanto Manuel se dirigia para a porta. Permaneceu ali no sofá sentindo a falta de algo. (Está algo desesperado o JF, tem calma puto não há nada que não se resolva.) Murmura consigo palavras que ele nem próprio entende, põe a mão esquerda no rosto enquanto o baixa, tira a mão de novo e deixa os braços cair enquanto levanta a cabeça e olha para o tecto. Está em luta consigo próprio. Luta em que não sabe se vai perder ou ganhar. Em que os desejos e fantasias se confundem com o seu dever ser ou devir ser, não importa aqui neste momento de maior confusão do nosso personagem a fixação dos termos correctos.

Mas os tempos não são confusos só para o João Firmino Alves. O próprio país parece confuso. O partido que governa tem maioria nas sondagens mas a contestação alastra pelas ruas. «O pão já está a 12 cêntimos, que roubo isto na moeda antiga eram vinte e quatro escudos dava para alimentar muita boca». Nas escolas alunos e professores não se entendem. «Ontem um dos meus alunos ameaçou-me aos berros que me batia se lhe marcasse falta. Como sou assim pequena e não quero problemas lá lhe tirei a falta». Sim, estão estranhos estes tempos de democracia. Mais de trinta anos se passaram sobre o dia da liberdade e nunca os portugueses tão tristes pareceram. «O que a gente há-de fazer com estes partidos?». Ontem, no Parlamento, o Primeiro-Ministro passou por lá para o debate mensal. Ataques ao maior partido da oposição, ataques pessoais deste ao Governo e à sua maioria. A história está-se sempre a repetir. Portugal mais parece um país esquizofrénico...

João Firmino levanta-se de repente. Sente que a angústia foi momentânea. Levanta a cabeça. Olha para as paredes da sala. Abre a boca tentando gritar, mas sabe que o momento ainda não é chegado isto se alguma vez chegar. [Tanto ódio e angústia que eu criei dentro de mim mãe] Depois sorri. Cerra as mãos e sente-se bem. Outro talvez chorasse, talvez desesperasse. Talvez se fechasse no quarto e lá permanecesse sem apetite, procurando acalmar-se para adormecer. Mas este João Firmino Alves não é assim. De tanta coisa que já viu e sentiu na vida o niilismo tomou conta dele. Não é personagem de romance piegas este jovem. Antes personagem e habitante de um mundo cada vez mais complexo e a caminhar para o seu grito final que ditará o fim de todo um estado de coisas. Enfim: João Firmino Alves – tudo o que não é humano... [Será mesmo mãe?] As risadas falsas ecoam pelas paredes da sala.