domingo, novembro 26, 2006

Os muros do novo século

Teve a segunda metade do século XX um símbolo de horror: um muro que uma cidade dividia. E com ela um país, um continente e, mais do que um país ou continente, duas potências políticas. Dois mundos no fundo. O muro ao qual me refiro dispensa apresentações. Já caiu, apesar de ainda dividir a cidade em muitas zonas, não pela sua presença mas pelas diferenças que ainda se sentem na cidade de Berlin, capital por onde já tive a sorte de passar.
Mas se a segunda metade do século XX foi marcada por um muro, e o final desse século ficou marcado pela sua queda, esta alvorada do séc. XXI será talvez um dia considerado o século dos muros. Isto depois de ler a reportagem de hoje no Expresso na página 36 do caderno principal, notícia que o Sol, concorrente directo do jornal de Balsemão, já problematizara na sua revista há duas semanas. "Os muros da vergonha". O s a mais por si só cria má sensação, a do pluralismo de um problema que já existiu. Mas que hoje, no chamado mundo global, não é tão mediatizado. Alguém que não conhecesse quais os muros em causa, poderia afirmar que estes só existem em países em desenvolvimento ou com problemas graves como o terrorismo. Nada mais errado. Um dos muros mostrados pela (mini)reportagem é o da fronteira entre o México e os Estados Unidos. Um muro ainda em construção. E que ainda se tornará maior, já que o presidente Bush recentemente assinou o Decreto que prevê mais 1250 km de vedação segura. A América cortada ao meio e não por um canal marítimo qualquer. Antes por um muro construído por aqueles que sonharam derrubar o muro de Berlin. Justificação agora do tio Sam: combater a imigração ilegal. Não sei quais as movimentações na fronteira entre os dois países. Mas durante dois séculos e meio de existência em que apenas o Rio Grande os separou não há notícia, deste lado do Atlântico, de problemas. Nos westerns de Hollywood, como o Rio Bravo de Hawks, há sempre a figura de um ou dois simpáticos mexicanos. Na literatura, Jack Kerouac relata no On the road a forma simples como passou a fronteira dos EUA com o México. parece-me, por isso, uma solução arrogante construir-se e manter tal muro. Uma solução de força, tomada pela mesma administração americana que invade países sem ouvir o mundo, e que depois os transforma em autênticos atoleiros de terror e miséria, criando para si um beco sem saída (ainda recentemente Kissinger confessava que é má solução continuar no Iraque, mas também a será se as tropas americanas abandonarem país).
Não é com muros que se pacificam conflitos. Por isso, não é com um muro a dividir Israel e a Palestina que se caminha para uma solução de paz permanente no conflito Israelo-árabe. Com a fronteira de betão os ódios continuam a ser atiçados. As injustiças continuam a fazer-se sentir. Pode o terrorismo ter diminuído, como afirmam as autoridades israelitas. Mas por trás do muro, bem escavado nos seus alicerces, pode uma segunda intenção estar - a não criação de um Estado Palestiniano. Estado a que se os árabes têm direito. Evoque-se, mais uma vez, a sétima arte. Lawrence da Arábia, filme de David Lean, mostra as negociações e as promessas dos ingleses para que a terra de ninguém no médio oriente fosse dada aos árabes. No entanto, após essas conversações, surgiram os movimentos sionistas. E até hoje, tudo mais não foi do que muito sangue e lágrimas derramadas.
Outros muros existem que o mundo envergonham. A linha de Átila no Chipre, que não só divide um país como a própria União Europeia. O muro de Caxemira entre territórios reivindicados pela Índia e Paquistão. E claro, a já famosa divisão entre as duas Coreias. Entre outros muros, que mais soam a muralhas devido à sua pretensa utilidade para defesa. Avança-se numa globalização com novos valores. Valores que me começam a parecer demasiado assustadores, e que revelam a falsidade deste modelo liberal de globalização. Olha-se primeiro para a "glocalização" antes de prosseguir a marcha deste fenómeno. Nos seus últimos livros, Saramago Está cada vez mais amargo. Sente o autor que o Homem cada vez está mais cego. Que o mundo actual atravessa uma crise de valores. Cada vez que surgem notícias sobre muros como a de hoje compreendemos essa amargura. Cada vez que nos recordamos da miséria em África sentimos que há um pedaço do mundo - o pedaço rico - que usa óculos demasiado escuros. E a nossa cegueira individual nada mais é do que "another brick in the wall".

PS - Este post marca o meu regresso aos textos na blogosfera. Texto escrito directamente no blog, como devem ter reparado. Estou em "silêncio" desde princípios de agosto. Mas não gosto de escrever na internet. É uma justificação. Ainda sou um purista. Gosto de torturar a minha escrita com caneta e papel. Afiná-la. Procurar-lhe uma base segura e uma construção suave. Algo que não se consegue com a pressa.
No entanto, tinha tanto que contar sobre as minhas experiências nestes meses sem escrever. Desde as viagens pelas linhas do Douro do Vouga entre outras, o conhecer a beleza do meu país, o contacto com a população, até às novas descobertas literárias e cinematográficas, Dostoievski e Antonioni (The passenger), mais a sensação de ter finalmente encarrilado a vida estudando aquilo de que gosto realmente - a área jurídica - sem esquecer os problemas da comunicação. E a política, o pensar a cidade do Porto, o país, a União Europeia e os seus problemas. Etc.
Talvez ainda tenham, meus caros leitores, notícias de tudo isto. Quem sabe...